Postagens

Mostrando postagens de 2018

Adeus, Luzia

Dormiu por tanto tempo a Luzia e no fundo da caverna esperou para mudar a história Mulher descavada e exposta na janela de vidro da memória Morreu duas vezes. Mulher negra, nossa mãe de criação, eva americana, elo perdido de um paraíso vilipendiado. Na fogueira do descaso, vira pó ao lado de tantas filhas exterminadas nesse país sem rosto de mulher
Não dá pra escrever uma coisa que não existe. Filho, quase cinco anos, refletindo sobre a escrita que ele recém conheceu e quer entender.

O NASCIMENTO DE JENIFER

Antes de haver tempo, nasceu da espuma das ondas ou de uma concha de madrepérola, uma deusa que seria dita do desejo, da beleza e do amor e todas as delícias humanas. Afrodite, depois Vênus, foi venerada e nunca esquecida. Já no tempo da história, um homem que pintava, dentre vários outros que desenhavam ou esculpiam, pensou nela como uma moça bonita de cabelos longos e vermelhos, que envolviam a sua nudez pudica. De um lado, um casal de ventos soprava sua chegada à costa; de outro, a ninfa primaveril ensaiava manter o seu recato com uma coberta de flores. Ontem nasceu Jenifer, expelida pela barriga da mãe, que foi morta e esmagada pela madeira que um caminhão levava. Recolhida pelo resgate entre as vísceras desta mulher que viajava de carona numa busca, talvez do desejo, da beleza e do amor. Naquelas brechas de carne e carga, a menina chorou e encontrou ar e vida. Resistente e teimosa insistência no meio do desastre, ganhou o manto prateado dos primeiros socorros e a lágrima

Esperando as águas

A água da chuva é uma água ansiosa. Foi o que o Pessoa falou. O mato espera, a lagoa espera, o corpo espera. Minhas águas chegam nesta espera pelo sutil tato calculado. Enquanto a chuva não parar ele não entrará por aquela porta. Até que a chuva não passe ele não irá embora. A chuva é uma água ansiosa e eu também sou

Um barco, não sabia se estava partindo ou chegando...

No sonho da moça o barco pairava perto de um porto. Imagem estática: uma fotografia noturna, tingida pela lua vermelha. Pintura que emanava cheiro quente de peixe e maresia de âncoras enferrujadas, cordas podres de velhos nós que se agarravam nas madeiras quase vivas de cracas. Renascidas a cada maré; pra dentro e pra fora das conchas... pra dentro e pra fora... Cortantes. Pirata. Marinheiro. Sentado de costas no barco que oscilava com a marola, no súbito único movimento daquele quadro. Com seus pés feitos raiz em terra, ela adivinhava seus olhos secos de sal, observando o eclipse, traçando os mapas no céu para a próxima partida .